domingo, 27 de maio de 2012

AFRICANIDADE E ENSINO DA LITERATURA

“Como neutralizar a influência negativa da literatura escrita antes dos novos conceitos de cidadania se estenderem a todos os cidadãos?”

Veio uma vizinha pedir um livro emprestado. Eu o tenho, portanto, emprestei, já que é uma menina a quem posso emprestar com a certeza de que terei o livro devolvido e em boas condições. Ela tem apenas onze anos e estuda com muito afinco: faz questão de aprender.

Mas uma coisa me intrigou: para que fins ela está lendo As aventuras de Tom Sawyer, do norte-americano Mark Twain? Fui até a casa dela para perguntar. E  a resposta era justamente a que eu suspeitava e temia. Ela é aluna da sexta série e vai ler o livro para um trabalho de Língua Portuguesa. 

Mas, em Língua Portuguesa, os alunos não deveriam ler livros escritos originalmente em Língua Portuguesa? Qualquer pessoa de bom senso perguntaria isto. E por diversas razões.

Em primeiro lugar, entra a questão da própria linguagem. Um livro como este tem diversas traduções – o meu é traduzido por Monteiro Lobato (Editora Brasiliense), com algumas intervenções pessoais no texto, mas é muito bem escrito. Não li em outras traduções, mas tenho também um exemplar com tradução de Alfredo Ferreira (Editora Vecchi). Hipoteticamente falando, podemos ter traduções menos qualificadas que estas, e até versões condensadas.

Em segundo lugar, o livro mostra a realidade de um outro povo, em outra época. A literatura, afinal, é o espelho do país onde é criada. Nós, brasileiros, temos “espelhos” literários de excelente qualidade, alguns escritos recentemente, falando de nossa realidade como ela é, neste século. 

As aventuras de Tom Sawyer é um livro escrito no século dezenove (publicado em 1876) e narrando fatos de pelo menos trinta anos antes, da infância do autor. Assim, ele se reporta a uma conjuntura social radicalmente diferente da nossa. É um ambiente de país escravocrata (como o nosso, aliás, também foi) onde o preconceito foi e é mais acirrado do que aqui no Brasil. Esse livro não se limita a descrever a situação do negro de uma forma perversa, embora corresponda à realidade daquela época, mas também tem o índio (Injun Joe) como o bandido da região. Em resumo, é um clássico da literatura infanto-juvenil, mas deve ser lido com espírito crítico, coisa que uma criança de onze ou doze anos ainda não tem. E que provavelmente  nunca terá, se continuar a estudar em uma escola onde esses critérios (ou falta de critérios) são mantidos.
Mas o pior de tudo é que, sendo uma escola pública, provavelmente muitos alunos afrodescendentes estudam nela. Como fica a auto-estima dessas crianças? Quantas e que espécie de brincadeiras agressivas podem ser feitas pelos colegas, atingindo os afrodescendentes, com base no texto deste livro? E, mesmo se ninguém falar nada, como será o sentimento de humilhação dessas crianças, diante de um texto com esses elementos, explícitos ou subjacentes?

Quando minha filha mais velha ia à escola, aprendeu uma música profundamente racista e eu escrevi uma carta reclamando. A música foi abolida do programa da escola. Mas, o que ainda hoje lamento, é ter constatado que aquela mensagem racista nem sequer tinha sido percebida pela equipe da escola.

Espero sinceramente que alguém faça alguma coisa quanto à presença do racismo nos textos escolares. Ou vou me sentir não só lamentando, mas também revoltada com a percepção de que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo permite, endossa e releva uma distorção desse nível, por puro descaso. Ou por falta de percepção da realidade subjacente naquilo que se propõe a ensinar.

Em 24.5.2012